Todo defensor público é um educador jurídico popular? A prática da Educação Jurídica Popular em Direitos Humanos na relação entre a Defensoria Pública e movimentos sociais e populares.



por Tânia Regina de Matos

1)- Todo Defensor Público é um educador jurídico popular?

            O(a) Defensor(a) Público(a) na sua atuação é capaz de escutar seu constituinte ( cidadão que necessita de assistência jurídica), com cuidado e afeto? Pratica a alteridade? Consegue estabelecer um diálogo de forma horizontal, nutrida de respeito, consciente de que seu assistido é sujeito de direitos? Tem compreensão que não há dicotomia entre conhecimento científico e conhecimento popular? Estabelece diálogo com grupos em situação de vulnerabilidade social?            
            Antes de responder aos questionamentos, pertinente lembrar que a Defensoria Pública é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe, como expressão e instrumento do regime democrático, fundamentalmente, a orientação jurídica, a promoção dos direitos humanos e a defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos, de forma integral e gratuita, aos necessitados, assim considerados na forma do inciso LXXIV do art. 5º da Constituição Federal. (Redação dada pela Lei Complementar nº 132, de 2009).
            Dessa forma, a rigor da lei, todo(a) Defensor Público(a) deveria ser um educador jurídico popular. Entretanto, para que isso ocorra é preciso refletir sobre quais valores norteiam a prática jurídica voltada para o povo. Se o profissional ou a instituição a qual pertence não fizer esta provocação interna, dificilmente um Defensor Público se tornará um educador jurídico popular.
            A Defensoria Pública como desenhada na Constituição deve fomentar a formação crítica dos estudantes e estagiários e a pós-formação de seus operadores e funcionários a fim de possibilitar a participação deles na transformação da realidade da população carente.  
            A vivência deste operador deve ser mais próxima possível de seus constituintes, ouvindo com cuidado a explicação sobre os fatos de sua realidade.
            O(a) Defensor(a) Públicos(a) para atuar com qualidade, atendendo os anseios de seus constituintes, precisa aprender com o povo, conforme ensina Miguel Arroyo, “o ser humano aprende a ser humano, aprendendo os significados que outros humanos dão à vida, à terra, ao amor.”1 É necessário que o profissional se coloque no lugar do outro.
            Educação na visão freireana é uma conduta, um conjunto de valores, um compromisso, uma postura, é uma relação entre pessoas, entre gerações.2 Nesta compreensão todos, inclusive os constituintes, são capazes de produzir conhecimento, que é fruto da análise da realidade.
            Seguindo este raciocínio, o constituinte do(a) Defensor Público(a) precisa confiar em seu procurador, ter certeza de que seu representante o entende. Para que isso ocorra o(a) profissional precisa  superar a distância que foi construída entre ele(a) e seus constituintes ao longo da sua formação cujo conteúdo foi basicamente científico. Aliás, o estudante de direito quando ingressa numa faculdade busca este tipo de conhecimento. Assim, tendo como professores magistrados, promotores de justiça, procuradores e outros operadores, os estudantes acabam sendo receptores passivos de conteúdo jurídico.
            Apropriado citar a lição de Eugênio Raúl Zaffaroni em sua clássica obra Em busca das penas perdidas, no que tange à formação e treinamento dos operadores dos órgãos judiciais.
            O jurista argentino esclarece os motivos que impedem o crescimento de profissionais voltados para uma evolução crítica do ensino jurídico, entre eles, ressalta: considerável massificação do ensino (aumento indiscriminado de faculdades privadas), redução da bibliografia, adestrada incapacidade para vincular fenômenos e, em geral, uma degradação tecnocrática do direito.4
            Nesta perspectiva, a atuação deste profissional se cingirá ao que ele aprendeu sobre o Direito durante sua faculdade, ou seja, apenas e tão somente aos conteúdos acadêmicos transmitidos, na maioria das vezes, por professores positivistas.
            Portanto, para que o(a) Defensor (a) Público(a) se torne um(a) educador(a) jurídico(a) deve estar atrelado aos movimentos sociais, participando inclusive deles, mostrando que o controle social deve ser exercido pelo povo sobre o Estado, e não o contrário.
            Através dessa atuação o(a) profissional se aproxima da população e tenta demonstrar que também é sujeito de opressão. E como tal, se articula para quebrar a hegemonia do pensamento dominante sobre justiça.
            O(a) educador(a) jurídico(a) popular deve ser instrumento de transformação social para efetivar as políticas públicas de saúde, educação, habitação, assistência social, trabalho e segurança pública, ainda insuficientes na grande parte do território nacional. 
            Diante disso, o(a) Defensor(a)/educador jurídico popular tem que comprometer-se com as discussões e articulações que contribuam para o empoderamento popular, ou seja, participar de Conselhos de Direitos, estar presente em conferências, audiências públicas e fóruns, apresentando projetos para trocar informações com os cidadãos, bem como fortalecer os instrumentos de comunicação popular e fomentar a criação desses canais.
            O(a) Defensor(a)/educador(a) deve também orientar seus constituintes a ocuparem espaços políticos e decisórios para transformarem a sua realidade. Erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais são objetivos fundamentais da República Federal do Brasil, e a Defensoria Pública tem a função de consolidar estes objetivos. A maior fome do povo não é de comida, mas de beleza e sonho.

2- A prática da Educação Jurídica Popular em Direitos Humanos na relação entre a Defensoria Pública e movimentos sociais e populares.
           
            A experiência da Defensoria Pública de Mato Grosso na prática da educação jurídica popular em direitos humanos começou logo que foi instalada, em 24 de Fevereiro de 1999, com apenas 24 profissionais.
            No início a maior demanda era para resolver conflitos conjugais, pensão alimentícia, acompanhamento de processos executivos de penas, etc.
Em 2002, ou seja, três anos depois o Governo do Estado publicou a lei 7.815 destinando assento à Defensoria Pública no Conselho Estadual dos Direitos da Mulher (CEDM-MT).
Desde então, a Instituição vem participando ativamente de todas as atividades pontuais, projetos e programas atinentes à temática da mulher.
Convocada a I Conferência Nacional de Políticas para Mulheres pela Presidência da República no ano de 2004, o CEDM-MT, sob a direção de uma representante* do NUEPOM (Núcleo de Estudo, Pesquisa e Organização da Mulher) da Universidade Federal de Mato Grosso, orientou todos os Conselhos Municipais e movimentos correlatos existentes à época no interior do Estado a mobilizarem o maior número possível de mulheres para a realização da I Conferência Municipal de Políticas voltadas ao sexo feminino.
Assim, abria-se uma nova área especializada de atuação para a Defensoria Pública. A Instituição passou a ser referência para orientação de mulheres pobres em situação de risco ou violência.
Com muitas conferências em andamento, integrantes da Defensoria Pública eram
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* Vera Lúcia Bertolini
convidados para palestrar durante os eventos, inclusive, a Instituição foi nomeada para compor a comissão organizadora da I Conferência Estadual de Políticas para as Mulheres.
Logo após a realização das conferências municipais e reuniões ampliadas, as delegadas eleitas em suas cidades, participaram da Conferência Estadual e nesta, foram eleitas 55 delegadas para participar da Conferência Nacional. Dentre as 55 vagas, uma foi destinada à Defensoria Pública, representando o governo.
Durante a I Conferência Nacional de Políticas para Mulheres, a Defensoria Pública foi citada em várias propostas, uma delas passou a fazer parte do Plano Nacional de Políticas para Mulheres que foi a instituição de redes de atendimento às mulheres em situação de violência em todos os estados brasileiros englobando as Defensorias Públicas da Mulher (Plano Nacional de Políticas para Mulheres, pág. 19).
A Defensoria Pública de Mato Grosso a partir da composição ao Conselho esteve presente na organização das demais conferências.
Em 2006 com a promulgação da lei 11.340, à vítima de violência doméstica foi garantido o acesso aos serviços da Defensoria Pública, artigo 28, bem como facultou aos Estados a criação de núcleos especializados para o atendimento à mulher, artigo 35, inciso III.
A legislação de proteção à mulher, além de criar mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar, reconheceu a importância da Defensoria Pública como Instituição, tanto que a inseriu no corpo da lei ao lado do Poder Judiciário e Ministério Público para integrar operacionalmente com outras áreas (segurança pública, assistência social, saúde, educação, trabalho e habitação artigo 8.º, inciso I).
Neste processo, alguns(as) Defensores(as) Públicos(as) de Mato Grosso se transformaram em atores sociais, juntamente com outras entidades e movimentos, assumindo solidariamente a tarefa de envolver pessoas preocupadas com as condições de vulnerabilidade social de grande parte das famílias brasileiras em construir um plano de políticas para superar a feminização da pobreza entre outros problemas relacionadas à questão da mulher. 
No decorrer do ano de 2007 a Defensoria Pública do Estado de Mato Grosso passou então, a cumprir um dos dispositivos da lei, preconizado no artigo 8.º, inciso V, realizando campanhas de prevenção da violência doméstica e familiar contra a mulher, voltadas ao público escolar e à sociedade em geral através de um singelo projeto chamado: “Maria da Penha nos Mutirões”. 
Idealizado por uma pedagoga* que exercia o magistério em uma escola pública
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*Maria Fernanda Figueiredo
primária, o projeto foi levado ao conhecimento de uma Defensora Pública que empolgada com a ideia, escreveu o texto e o apresentou no I Fórum sobre a Defensoria Pública em Fevereiro de 2007, passando a ser executado a partir de então nos bairros periféricos da capital e Várzea Grande, município vizinho.
Por meio de um teatro de fantoches, a mensagem era transmitida de forma simples e lúdica. Três personagens: Rosalina, Justino e Pedrinho conversavam a respeito da violência e dos estereótipos, chamando a atenção para a lei, que até então, era desconhecida pela grande maioria da população.
O projeto foi levado a todos os mutirões que a Defensoria Pública realizava e dos quais participava como parceira. Além das apresentações durante os mutirões, empresas privadas, escolas públicas e outros órgãos também solicitaram a exibição do teatro.
Um ano após a promulgação da lei 11.340/06 foi realizada a II Conferência Nacional de Políticas para Mulheres (II CNPM) o que propiciou a cobrança dos equipamentos sociais assegurados pela legislação, mas ainda não implementada em grande parte das unidades da federação.
Quase todas as propostas indicavam a necessidade da criação de núcleos da Defensoria especializados no atendimento à mulher em todos os Estados, instalação de casas de amparo para mulheres e locais para reabilitação dos agressores, além de centros de referência para atender as vítimas de violência doméstica.
Encerrada a II CNPM, Mato Grosso sequer havia assinado o Pacto Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres, o que inviabilizava apresentações de projetos para captação de recursos do Governo Federal.
Constatada a necessidade de adesão ao documento uma campanha foi delineada com tal intento. Uma das ações do Conselho Estadual dos Direitos da Mulher, presidida por uma advogada*, representante da Ordem dos Advogados do Brasil, foi realizar um levantamento de números sobre a violência contra as mulheres e entregar a todos os deputados da Assembleia Legislativa.
O resultado estarrecedor de 78.168 ocorrências de violência física contra a mulher registradas em apenas 8 municípios, dos 141 do Estado, motivou a realização em Dezembro de 2009 do Seminário: "Violência contra a mulher é uma violação aos Direitos Humanos", em parceria com a Defensoria Pública.
Entidades de defesa do gênero feminino como o Fórum de Articulação de Mulheres,
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* Ana Emília Iponema Brasil Sotero
FAM-MT, União Brasileira de Mulheres, UBM-MT, Conselho Estadual dos Direitos da Mulher, CEDM-MT e outras se uniram para requerer do Governo a instalação de um órgão gestor de políticas públicas para que o Pacto Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres fosse finalmente assinado.
No mês de Maio do ano seguinte a Superintendência Estadual de Políticas Públicas foi criada e em seguida o Projeto Integral Básico (diagnóstico, definição de municípios-pólo e planejamento das Ações do Pacto) foi elaborado e entregue para a Câmara Técnica Federal (a fim de receber apoio e parcerias).
A Câmara Técnica Federal tem atribuições de monitorar a implementação das ações e o cumprimento das metas estabelecidas, além de definir estratégias e avaliar os resultados alcançados.
            Por sua vez a Câmara Técnica Estadual objetiva elaborar o plano de trabalho, com detalhamento das ações a serem implementadas, cronograma e promoção da execução, monitorar e avaliar as ações do Pacto no Estado e sugerir o aperfeiçoamento dessas ações.
            A Câmara Estadual está sob a coordenação do Organismo de Política para as mulheres estadual, devendo ser composta, por sugestão do Governo Federal, pelos seguintes órgãos: representantes das 3 (três) esferas de governo (União, Estado e Município), Secretarias Estaduais envolvidas no Pacto, dos Conselhos de Direitos da Mulher, da sociedade civil, das universidades, do Poder Judiciário, do Ministério Público, da Defensoria Pública.
            Em 2011 foi lançada pela Defensoria Pública* de Barra do Garças, cidade distante 500 quilômetros da capital, a campanha “Violência contra a Mulher, Vamos meter a colher”, cujo objetivo foi levar informações a respeito da lei Maria da Penha, através de palestras para toda a comunidade. No mês de março de 2012 a campanha se repetiu em parceria com a Delegacia da Mulher.
            Também em 2011 teve início uma campanha intitulada “Março Sempre Mulher” organizada pelo Conselho Estadual dos Direitos da Mulher e pela Superintendência de Políticas para Mulheres que deu visibilidade a todos os serviços oferecidos às mulheres de Mato Grosso. Uma extensa programação foi divulgada tendo dentre elas o atendimento às mulheres em situação de prisão pelo Núcleo Estadual de Execução Penal da Defensoria Pública. No ano seguinte houve a segunda edição com sucesso.
            A Defensoria Pública passou a fazer parte do processo de consolidação das políticas públicas para mulheres no Estado porque uma boa parte de seus integrantes conseguiu sair de
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* Lindalva de Fátima Ramos

seus gabinetes e das salas de audiências, penetrando em espaços diferentes do seu cotidiano.
            Ensina um dos mais famosos sociólogos da atualidade: “quanto mais as pessoas permanecem num ambiente uniforme – na companhia de outras “como elas” com as quais podem ter superficialmente uma “vida social” praticamente sem correrem o risco da incompreensão e sem enfrentarem a perturbadora necessidade de traduzir diferentes universos de significado -, mais é provável que “desaprendam” a arte de negociar significados compartilhados e um modus covivendi agradável.” 4
            Convido meus colegas a fazerem uma autorreflexão tendo em vista a capacidade da escuta e da aproximação para com a nossa “clientela”. O termômetro dessa relação é a ouvidoria, composta por integrantes externos aos nossos quadros. Temos conseguido aceitar as críticas que nos chegam através deste órgão ou ainda nos insurgimos contra ele com justificativas vazias e frágeis? Afinal, ser ouvido não é um direito humano?
            Para encerrar entendo que precisamos estimular o diálogo sobre os direitos humanos com os movimentos populares, as organizações socais e com o terceiro setor tendo como objetivo o resgate de sonhos e esperanças bem como a construção de caminhos para uma nação mais livre, justa e solidária (artigo 3.º, inciso I da CF).



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A autora é especialista em Ciências Penais pela Fundação Escola Superior do Ministério Público de Mato Grosso. Defensora Pública no Estado de Mato Grosso. Membro do Conselho Estadual dos Direitos da Mulher de Mato Grosso, da Associação Brasileira de Mulheres de Carreira Jurídica de Mato Grosso, da União Brasileira de Mulheres de Mato Grosso, da Associação Nacional de Magistradas na qualidade de colaboradora.

Bibliografia:

1 e 2 ARROYO, Miguel. A contribuição do pensamento de Paulo Freire para a construção do projeto popular para o Brasil, 27 de Outubro de 2011, publicado no site www.recid.org.br

3 ZAFFARONI, Raúl Eugenio. Em busca das penas perdidas. A perda da legitimidade do sistema penal. 5ª ed. Rio de Janeiro, Ed. Revan, 2001, 281 ps.

4 ZYGMUNT Bauman, Tempos líquidos. Ed.Jorge Zahar, Rio de Janeiro 2007.

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